Pra variar já faz algum tempo que eu não escrevo porra nenhuma aqui. Na real, tem acontecido um monte de coisas, mas que eu ando mais preocupado em curtir do que contar. A maior das novidades (mesmo tratando-se de uma bela baixinha), que é minha namorada, já foi assunto de lista de discussões e das conversar se todos os grupos de amigos que tenho, portando guardo-a egoistamente pra mim, e não conto nada sobre ela no momento.
Bem… como não coloco nada aqui há tempos, resolvi colocar algo que escrevi com o objetivo de embasar a personalidade de uma personagem pra um futuro roteiro. Desde que eu entrei na famecos eu sempre disse que um dia queria fazer um filme que faria as pessoas sairem tão desesperadas do cinema que se matariam assim que possível. O que vem a seguir creio que está já quase triste o suficiente. Espero que gostem. São flashs da vida dos pais da personagem.
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Queria não estar ali. Queria que sua maquiagem não tivesse borrado. Queria que não estivesse chovendo. Queria voltar correndo pra casa. Queria que ele a deixasse deitar em seu colo pra sempre. Queria que a garganta não doesse tanto. Queria saber as palavras certas. Queria que ele entendesse. Queria que o olhar dele não fosse tão assustado. Mas sabia que ele estava daquele jeito porque ela simplesmente chorara desde o minuto que entrara no apartamento dele até agora, e que isso já fazia meia hora. Tinha que fazer aquilo sair de sua boca, do jeito menos horrível que fosse capaz.
Mas e se ele saísse correndo? E se todo o brilho que seus olhos tinham pra ele simplesmente se apagasse no final daquela áspera frase? E se tudo que havia sido simplesmente deixasse de ser em um segundo? Tinha que arriscar. Não tinha outra coisa pra fazer. Em um soluço final longo, como se sentisse toda a esperança do mundo desaparecer antes de conseguir atingir seus pulmões.
– Eu estou grávida.
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– Tu vai mesmo fazer isso?
– Vou sim.
– Mas porque tu quer ou rolou uma pressão?
– Porque eu quero, cara. Pára de apurrinhar com isso.
– Mas vai dizer que tu não vai sentir falta das festas, das biras, das minas?
– Sabe tchê… eu pensei pra caralho nisso. Te juro que mesmo abraçando ela depois que ela me contou eu tava com a maior vontade de sair correndo. Mas depois que ela foi embora mais calma eu parei e fiquei olhando pela janela. E sabe como acontece nos filmes que daí começam a passar pais com filhos por todos os lados e tu pensa no assunto e não parece ruim? E nos dias que passam tu acaba achando o teu primo de três anos mais legal e o nenê da vizinha fica bonitinho?
– Não.
– Vai te fuder!
– Heheh. Desculpa, não deu pra resistir.
– A real é que agora eu to curtindo tudo isso. Estar com ela, cuidar dela, ver a barriga crescer. Cara! É assustador quando o guri se mexe…
– Guri? Já sabem o sexo?
– Não. Heheh. Mais vai ser do caralho se for um guri.
– Tomara que seja colorado só pra te deixar puto dos cornos.
– Vai tomar no cu.
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“Ele até parece decente com esse terno. Podia estar com uma cara um pouco menos abobada. Se bem que ela está linda mesmo. Por mais que eu não goste dele o guri encarou de frente. Eu tinha certeza que ele ia fugir na primeira chance. Agora faltam alguns minutos pra eles estarem casados, e mais dois meses pra encararem a vida de verdade. Daí sim vamos ver do que ele é feito. Se ele abandonar ou magoar minha filha eu capo o desgraçado. Pior, eu mando arrastarem ele até Bagé, pendurado por uma corda em uma caminhonete. Não vai sobrar boca de sino pra contar a história. Espero que ele aceite o trabalho na firma. Será bom pra eles, e pra eu manter um olho sobre este mulherengo de merda. Conheci o putanheiro do pai dele e certamente são farinha do mesmo saco. Onde minha filha foi se meter? Espero que meu neto se pareça com ela. Nem um traço deste bosta. Olha a cara de abobado. Será que eu estava com esta cara quando casei? Ela é tão linda quanto a mãe. Espero que a irmã seja um pouquinho mais sensata. Pelo menos o celerado do pai dele ajudou a pagar o casamento.”
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Olhava em volta com os olhos arregalados. Tudo era tão perfeito. Tão bonito. Cada móvel, cada quadro. Seus pais e os dele eram os melhores do mundo. Até o carpete sob seus joelhos no chão era macio. Tudo era mais do que perfeito.
Então porque continuava doendo tanto. Porque parecia que nem todo ar do planeta poderia encher seus pulmões e fazer seu peito parar de parecer que ia implodir? Porque tinha tanta vontade de chorar.
Levantou-se e caminhou até o banheiro. Quem era aquela no espelho? De quem eram aqueles brincos? Aquele prendedor de cabelo? Aquele vestido? Se passasse por si mesma na rua um mês antes não seria capaz de reconhecer.
Apoiou as mãos no mármore frio do balcão do banheiro, quando o primeiro soluço fez seus seios inchados e sua barriga balançarem. Por que ele aceitara o trabalho que o pai dela oferecera? O que havia com ele? Sim, ele era gentil, ele era corajoso. Mas quem era ele? Onde deixara cair seus sonhos de ser fotógrafo internacional? De ver todas as partes do mundo com ela?
A imagem de si mesma desvaneceu-se suavemente para os seus olhos molhados. Não sentiu que desmaiava enquanto seu sangue pintava o tapete novo do banheiro. Não ouviu os gritos desesperados dele quando a encontrou ali. Não soube dos horrores que seu pai disse a ele no hospital, nem que o lençol que estava na sua cama era o mesmo que havia estado na cama da dona da lavanderia da esquina que tivera o filho morto quatro meses antes.
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– É a única coisa a fazer, filho.
– Mas tem que haver uma outra solução!
– Paulo, tu tem que entender que depois do que ela fez não podemos deixa-la perto da criança, e muito menos deixa-la sozinha.
– Mas eu é que deveria cuidar dela!
– Tu já tentou cuidar dela, meu filho. Infelizmente dessa vez todo teu esforço não foi o suficiente. Ela precisa de ajuda, precisa de tratamento.
– Eu deveria ter ouvido o médico e procurado um psicólogo pra ela logo depois do parto. Ele disse que não era raro mulheres em estado semelhante ao dela perderem a sanidade temporariamente e atentarem contra a vida dos bebês. Mas eu me irritei, xinguei o médico e fui embora.
– Pare de se culpar. Ela não parecia mal. Ninguém entendeu o que aconteceu. Todos tinham certeza de que ela estava feliz.
– Vamos embora. Não gosto de ficar olhando ela assim, completamente dopada. E ela nem sabe que estamos aqui.
– Tudo vai ficar bem.
– Foi o que eu disse pra ela depois que ela me contou que estava grávida.
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Por mais que todos rezassem pelo clichê, pela trilha sonora óbvia, não estava sendo assim. Ao contrário de chuva, o que encharcava a todos era um calor insuportável que os nordestinos insistiam em não acreditar que fazia o sul. Ao invés da música triste saindo de algum lugar incerto, o barulho de ferro sendo cortado e de marretadas no chão preenchia o ar pesado. Uma obra no cemitério realmente não incomodaria os inquilinos, mas ninguém pensara nos entes queridos deles. Ninguém nunca pensa nos entes queridos. Principalmente os cadáveres, que morrem sem a menor cerimônia ou preocupação com quem fica.
Paulo não ouvia uma palavra do padre, não ouvia uma palavra de quem quer que fosse. Praticamente esquecera o caixão. Ficava apenas a fitar o rosto calmo de sua filha, completamente apavorado. Queria sumir, sair correndo, voltar no tempo, vestir nove camisinhas antes daquela trepada derradeira.
E como ela podia fazer isso com ele? Como ela podia abandonar ele, tão irresponsável e covarde que era com aquela criança no colo. Um nenê de verdade, que se mexia, sentia, chorava e um dia perguntaria onde estava sua mãe? O que ele iria dizer pra ela? Bem filha, ela tentou te matar e depois pulou da janela quando teve chance? Como ela poderia ser feliz?
E depois que eles finalmente tampassem aquele buraco onde haviam enfiado ela, e atrolhassem toda a frente com aquelas coroas de flores horríveis, ele teria que ir pra casa sozinho e encarar aquele apartamento que ele tinha certeza seria enorme quando ele abrisse a porta. Teria que ver as roupas dela no armário, e sentiria o cheiro dela no travesseiro. E ainda teriam aqueles idiotas que sempre estão completamente desinformados de tudo para os quais ele teria que contar um milhão de vezes o que aconteceu.
“Meu amor, bem que tu podia espirrar quando eles colocassem a última coroa, só pra matar este bando de desgraçados de susto!”
Quando todos deram por si, após tampado o caixão, Paulo não estava mais lá. Nem ele nem a filha. Mas o calor e o barulho continuavam, pouco se lixando para a surpresa deles.