Tossiu algumas vezes, sentindo os olhos encherem-se d’água, tamanha a dor que sentia na traquéia. Estava com as mãos apoiadas na borda da pia. Tudo em sua vida sempre fora invariavelmente vermelho. As roupas, os dias, as paredes, os beijos. Os pensamentos. Naquele momento, tudo era branco. Paredes, toalhas, tapetes, louças, banheira. Sua pele também era mais branca do que jamais fora. Apenas sua boca era roxa.
Tinha medo de respirar fundo e provocar outro ataque de tosse. Sentia as mãos muito secas. A boca parecia estar repleta de alguma substância viscosa que mal permitia que seus lábios se abrissem. Sorriu olhando-se no espelho. Nem precisava fingir não saber o que procurava. Via nos traços duros, na pele grudada no osso, na olheiras profundas e na pele surrada, o atentado que fizera contra sua própria beleza. Os lábios quebrados pensaram em abrir-se e dizer a ela mesma que jamais a reconheceriam se resolvesse voltar para onde tudo começara.
Num momento como aqueles, deveria haver música. Uma música calma e sem ninguém cantando. Uma música lenta, como seus movimentos, como sua respiração controlada. Mas não havia música. Mal havia luz ali. E sem dúvida nenhuma, não havia testemunha.
Caminhou até a banheira de louça. Alguns remendos de cimento branco aqui e ali não eram capazes de estragar a beleza da peça. Abriu as duas torneiras, tendo a impressão que a textura de suas mãos era mais áspera que a do ferro. Suas unhas estavam amareladas. Ninguém mais queria fotografá-las. Levou a mão esquerda até os cabelos loiros, secos e desgrenhados, e puxou-os sem muita força, apenas para se lembrar que ainda os tinha. Observou a água encher a banheira sem fazer nenhum movimento sequer. Apenas seu peito se movia. Fechou as torneiras.
Voltou à frente da pia e parou sobre o tapete branco, de tecido semelhante a uma toalha. Era bom senti-lo sob as palmas dos pés nus. Olhou seus olhos novamente no espelho. Finalmente começavam a ganhar alguma cor. As palpebras inferiores ficaram vermelhas com as lágrimas que começaram a correr em algum momento enquanto a banheira enchia. Mas ja estava acostumada a não sentir certas reações de seu organismo. Gostava do vermelho das suas pálpebras. Lembravam todo o vermelho de quando sua vida era empolgante.
Abriu a o armário ao lado do espelho. Na prateleira mais abaixo, junto com alguns tubos vazios de cosméticos que nem eram fabricados mais, estava aquilo que ela procurava. Pegou o copo com a seringa e colocou-o sobre a pia. O plastico leitoso semi-transparente do copo era uma das poucas coisas não frias naquele banheiro. Abriu o pacote com a agulha descartável e segurou-a com o polegar e o indicador da mão esquerda. Com a outra mão, pegou a seringa. Olhou-se mais uma vez no espelho, dessa vez sentindo seus lábios contorcendo-se de tanta força que fazia para segurar o pranto. Sentiu o choro explodir sonoramente pelo banheiro em um eco desesperado, seguido de um ataque de tosse doloroso demais para ser suportado de pé. Deixou-se escorregar até o chão apoiada na pia, ouvindo a seringa e a agulha fazerem um barulho suave ao cairem para perto do ralo.
Tossiu por um tempo incontável, sentindo a cada convulsão, a substância espessa dentro de sua traqueia arranhar suas paredes. O muco que chegava ate sua garganta era quente e grosso, e a impediria de falar, se tentasse, de tanto que aderira às suas cordas vocais. Cansada, com as lágrimas escorrendo ainda mais quentes, apoiou-se na pia e levantou-se novamente.
Pegou novamente a seringa do fundo da pia. A agulha certamente havia entrado pelo cano. Abriu um novo pacote e segurou a nova agulha com os mesmos dedos. Girava-a para lá e para cá, como se por alguns segundos houvesse uma pausa em seus pensamentos. Começou a caminhar em direção à banheira sem notar que seus lábios roxos estavam umedecidos de vermelho.
Entrou na banheira com dificuldade, sentindo-se tão ágil quanto uma velha caquética. Em outros tempos aquela seringa seria o instrumento que lhe traria o prazer absoluto. Em outros tempos lhe traria, mesmo antes de penetrar sua pele, uma sensaçao de leveza, de calma. Agora o que quer que fosse apenas lhe deixava cansada. Tudo a deixava cansada. Estava exausta. Demais.
Mergulhou o corpo devagar na água. Estava tão fria quanto o resto do banheiro. Pensou no futuro azulado de sua pele. Quase sorriu. Deixou-se sentir o frio da agua por algum tempo, de olhos fechados, com as mãos mergulhadas na água, segurando a seringa e a agulha. Cansada. Muito cansada.
Respirou fundo e reuniu todas as suas forças. Seus movimentos, repentinamente, readquiriram a leveza e a graça do passado, embora nenhum esforço fosse capaz de limpar a decadência estampada em seu rosto. Ajoelhou-se dentro da banheira, abriu a mão e deixou a seringa cair na água e afundar. Com um sorriso diferente daquele desmaiado que havia em seu rosto minutos atrás. Era hora de começar aquilo para o que se preparava há algumas horas.
Estendeu o braço esquerdo para frente com a palma da mão fechada virada para cima. Segurando a agulha com força com a mão direita, encostou a ponta na altura do seu pulso e pressionou ate uma gota de sangue começar a surgir do buraco imperceptivel. Então começou a puxar a agulha em direção ao corpo, riscando a pele durante todo o caminho. Uma vez perto do ombro, levou novamente a agulha ao pulso e repetiu o movimento mais quatro vezes. Trocou a agulha de mão e repetiu o processo no outro braço.
Fosse um filme e não sua vida, com certeza aquelas gotas teriam caído na água em câmera lenta. O som provavelmente também não seria ouvido. Em seu lugar, uma trilha sonora triste, vagaroza e pesada. Mas ali não haviam ângulos inusitados ou inovações tecnológicas. Apenas o sangue escorrendo de seus braços brancos e mergulhando na água, para se dissolver rapidamente.
A dor ainda era quase imperceptível. Ela precisava de mais. Bem mais. Precisava sentir e usaria aquela agulha para isso. Mas não da maneira como usava sempre. Aquela seria a estréia desse novo método. Abriu bem a mão e olhou para as costas dela. Virou e observou a palma. Virou-a novamente de costas, sorriu, e com um movimento rápido cravou agulha até que a parte de plástico que servia para encaixar na seringa encostasse sua pele. Sim! Agora sentia.
Uma alegria há muito esquecida invadiu seu peito. Uma alegria de uma sinceridade incomparável. E foi essa alegria que encheu seus olhos de lágrimas quentes que lhe enchiam de prazer enquanto escorriam pelo seu rosto e pescoço gelados. Ria alto agora. Abriu a boca e esticou a língua bem para fora. Mais uma vez, em um só movimento, removeu a agulha das costas da mão esquerda e atravessou a língua com ela. Dessa vez não a manteve cravada. Retirou rápido, deixando sua língua voltar à boca, e inundar sua garganta de sangue quente e azedo.
Seu pranto agora a enchia de calma. Depois de tanto, tanto tempo, estava em paz. Sua única certeza é que essa paz só poderia durar pra sempre de um jeito. Era uma certeza simples, que não a amedrontava de maneira nenhuma, e que no final das contas, parecia muito menos dramática do que se manter daquele jeito deplorável.
Deixou o corpo escorregar para dentro da banheira. Com a mão esquerda dormente de dor, segurou a seringa. Rapidamente atarrachou a agulha nela. Respirou fundo ainda sorrindo. Ainda com a respiração leve que apenas aquelas pessoas que vivenciam os raros momentos em que tudo que devia e poderia já foi feito, e que nada mais está por vir sabem como é. Encostou a cabeça na borda da banheira, fechou os olhos. Deveria fazer tudo em um golpe só.
O ar que a seringa injetou na artéria de seu pescoço chegou rapidamente ao cérebro, acabando de uma vez por todas com uma agonia que ela nem entendia, nem sabia quando começou. As fotos de seu corpo imerso na banheira lavada de sangue ainda serviram para encher alguns bolsos de dinheiro. Seu funeral foi acompanhado apenas pelos pais e uns poucos amigos. As cinzas estão divididas em um grande número de pequenos frascos, que podem ser adquiridos por um preço nem tão absurdo pela internet.