Dezoito

Eu vou morrer.

Pensou sem muito sentimento envolvido. Era apenas matemática. Contou todos ao redor e não tinha muito mais o que considerar.

São dezoito. E um deles vai me matar.

Não deixava de ser frustrante. Já havia matado muito mais de dezoito em outras situações. Mas infelizmente a matemática era muito menos tolerante que as letras. E dessa vez era ela que estava ditando as regras ali.

Contou mais uma vez. Continuavam dezoito.

Com os dedos suando, retirou rapidamente o pente da pistola e recontou as balas. Continuavam apenas nove.

Qual dos idiotas irá me matar?

Preferia que fosse, pelo menos, o melhor deles. Mas nunca era. Sempre se morria com um tiro do menos capaz dos idiotas, o qual era agraciado com uma oportunidade de ouro. E isso sim era irritante. Revoltante.

Respirou fundo, sentindo o ar estabilizar os globos oculares, e moveu-se rapidamente para fora de onde estava escondido. Puxou o gatilho.

Dezessete. E oito balas no pente.

E o merda caíra longe. Longe pra caralho. Longe demais pra mudar a conta. Um deles ia acertar uma bala em algum lugar que talvez nem o matasse de uma vez. E o faria mancar até ser pego pelo idiota final.

Merda.

Precisava atirar de novo. Mas era ruim contar as balas regressivamente. Principalmente matando gente longe demais.

Dezessete.

Ouvia-os se mover, tentando chegar perto.

Mais um movimento. Sete balas. Dezesseis.

Dessa vez ouviu o merda engasgar-se antes de cair. Pescoço. Será que seria onde o acertariam também?

Dezesseis era um número que ele gostava. Não era seu aniversário, nem nada. Apenas um número que ele gostava. Uma vez ganhara uma grana na roleta com esse número. Gastara com uma boa dose de bebida.

Quinze. O que quinze lhe trazia de bom? A idade em que trepara pela primeira vez? Havia sido uma trepada de merda, mas pelo menos o fez rir no meio daquela situação cagada. Quinze. Lá vamos nós.

Correu pra um lugar próximo, talvez com chance de se aproximar do cadáver dezesseis. Atirou. Quinze.

Vou morrer. Não acredito nisso.

Quinze era fiasquento e gritou enquanto morria. Parecia condizente com aquele número. Ele nem sabia bem por quê. Mas fazia sentido.

Quando fizera quatorze anos seu pai havia lhe dado seu primeiro revolver. Nem sua mãe sabia disso. Mas era verdade. Atirou tanto que chegou a criar calo no dedo indicador. Talvez fosse o número da sorte.

Mas se o número da bala era o que contava, não era nada promissor. Como matar catorze com quatro balas.

Eu vou morrer aqui. Nesse lugar de merda. Com essa gente de merda.

Catorze e treze morreram em um movimento só. Dois tiros em sequência, muito precisos. Dignos de alguém que não merecia morrer ali. Mas morreria.

Duas balas.

Balas.

Quando era pequeno, bem pequenos mesmo, aprendera a implorar por balas e chocolates a quem quer que caísse no charme de seus gigantes olhos castanhos. E ganhava tantas balas. Tantos chocolates. Isso não servia pra nada ali.

Duas.

Fora casado duas vezes. Tivera duas filhas. Duas chances de mudar de vida. Duas horas pra desistir desse trabalho. Duas opções de ação. E escolheu a pior.

Vou morrer aqui.

E ninguém vai saber.

Eu quero ele vivo! Alguém gritou.

A força com que aquela frase comprimiu suas costelas e fez a certeza lhe turvar os olhos foi algo que ele jamais admitiria.

Eu preciso morrer aqui.

Duas balas.

E uma é minha.

Breve sessão de tortura (conto)

A sala era quente, mal iluminada e fedia. No momento, além do insalubre ecossistema usual, era frequentada por mais quatro indivíduos, sendo todos eles homens de índole questionável, mas estando apenas um deles em menor número.

Ele estava amarrado, amassado e arrependido. Claro que, como qualquer pilantra, arrependido de ter sido pego e não de ter feito a merda. Era magro, feio, barba falha e cabelo ralo no topo da cabeça. Se vestia pouco melhor que o Wally, mas aparentemente era bem mais fácil de ser encontrado, considerando a situação em que estava.

Os outros três estavam em silêncio já havia algum tempo. Um deles também estava sentado. Desfrutava, sobre o primeiro, da considerável vantagem de não estar amarrado e sangrando. Tinha a cara gorda e brutal, e era dono de todo o dinheiro que o Wally amarrado não tinha como pagar. Em pé, ao lado do gordão, estava uma coleção de músculos provavelmente animada através de algum ritual macabro. Havia sido esse brutamontes que deixara a cara do Wally combinando com a camiseta vermelha. Não dissera uma palavra, simplesmente batera com suas gigantescas e sólidas patas na cara do magrela, sem nem mesmo ameaçá-lo.

Mas, normalmente, quem está apanhando, sabe qual é a razão,  e isso costuma tornar as palavras um tanto dispensáveis.

O terceiro cara era tão adequado ao ambiente quanto o Xicão Tofani em um programa de comentaristas esportivos. Parecia uma enorme criança de três anos, perturbadoramente proporcional. Era cabeça de um bebê em alguém de um metro e setenta e quatro de altura, com os ombros pequenos e a barriga com aquele arredondado infantil. Mas não chorava, ria ou balbuciava sílabas cobertas de baba. Apenas olhava na direção do Wally como se não conseguisse ter certeza se ele estava ali ou não.

O gordo tomou um longo gole de um fedorento suco de goiaba, enquanto o bebezão se aproximava do Wally.

“Como a impossibilidade de que você me pague é uma irrefutável verdade matemática, e como você já se mostrou um completo imprestável, decidi te dar a chance de servir de cobaia pra uma ideia que meu novo colaborador aqui me apresentou na semana passada” – mais um gole. O cabeça de nenê agora estava mais próximo do Wally. Levou a mão esquerda para trás, para pegar algo no bolso da calça. Era algo enrolado em uma toalha de rosto amarela úmida, que escapou da mão dele e se estatelou no chão, fazendo um som metálico de efeito cicatrizante para o entre-nádegas do Wally.

Os músculos se abaixaram, pegaram o alicate do chão e entregaram pro cabeça de nenê, que o pegou, abriu e fechou a ferramenta testando sua resistência. Olhou Wally nos olhos. “Você consegue manter sua boca mole aberta ou precisaremos mantê-la pra você?”

Embora Wally chorasse, gritasse e babasse, sua boca não ficava aberta o suficiente para que o cabeça de nenê conseguisse trabalhar tranquilamente. Foi necessário que músculos o segurasse para que mantivesse a boca bem aberta. Até porque o cabeça de nenê era mirrado e não tinha muita força. O que fez com que levasse alguns minutos para que, apertando o incisivo do Wally com o alicate, fosse capaz de fazer o dente estourar em pedacinhos.

Entre desmaios, vômitos, choros e retomadas de consciência, foram necessários dois dias e sete pizzas para que o serviço estivesse completo. O cabeça de nenê ria de forma condizente à sua aparência cada vez que, depois de muita pressão, o dente finalmente não aguentava e estourava, como um pedaço de gelo, espalhando estilhaços por toda a sala. Gostava não apenas da sensação de apertar o alicate como do som que fazia o dente ao explodir.

Duas semanas depois, o gordo decidiu que seria mais seguro para todos se o cara de bebê fosse arremessado de sua cobertura no centro. Na queda, o corpo estragou irreversivelmente um carrinho de pipocas e um falso cedo vendedor de raspadinha.

unstoppable headache

Acordou cansado e suando. Mais desanimador que o calor era a consciência. Sabia que aquele dia teria apenas um tema. Sim, muitas coisas aconteceriam, mas apenas uma delas era o momento principal, a razão de existiencia daquele dia. O resto era nada.

Se levantou com os braços magros abraçando a si mesmo, tentando conter um frio que não sentia. Caminhou até a escrivaninha e olhou a pilha de coisas que havia organizado desorganizadamente no dia anterior, enquanto os neurônios ainda tinham disposição pra tentar a se comunicar.
Mas agora era quase meio-dia, a manhã tinha partido sem nenhum controle e sobrara apenas o problema. Apenas aquele caos. Olhava tentando não prestar atenção. Tentava não distribuir cada objeto da trilha cronologicamente em uma vida que já não mais existia. Tentava não sentir saudade. Tentava não saber o significado mesmo de um botão de camisa quebrado. Mas sabia de cor. De cor como não era capaz de saber o mais irrelevante dos poemas. E aquilo o desmontava como o mais perfeito deles.

Amaldiçoou a memória e amaldiçoou a si mesmo. E ainda assim sabia do quão inútil era. E tanta coisa era inútil. Se sentiu prestes a se perder em devaneios e por segundos tudo que desejou foi ser engolido por um gigantesco redemoínho deles. Um turbilhão incontrolável que jamais o deixasse voltar a tona. Mas era uma esperança incabível. Incabível, improvável e inútil. Como tudo.

Não gostava de sacos de lixo azul. Achava-os ridículos. Mas eram grandes e pareciam mágicos o suficiente para guardar dentro deles aquilo pra sempre. Ou pelo menos pra levar tudo aquilo pra longe. Mesmo que jamais fosse estar longe o suficiente. Maldito cérebro. Isistia em ficar tão perto. Tão vivo.

Nada em sua vida, ou na de nenhum ser humano, seria um estorvo maior do que a consciência.

conto sem nome (pra ler ouvindo Pierrot The Clown – Placebo)

Sempre imaginou grandes momentos em câmera lenta. Sempre os quis em um rítmo de videoclip, sempre imaginando qual música estaria tocando. E sempre seria uma daquelas que lhe deixavam com um vácuo memorável no peito. Um vácuo que nunca conseguia entender se era bom ou ruim. Importava que era único.
Mas agora tudo se movia exatamente naquela velocidade. Mas agora todas as músicas que imaginara pareciam tocar ao mesmo tempo. Mas agora não conseguia simplesmente mudar o foco do pensamento e deixar aquilo pra mais tarde.
O ritmo não engolfava apenas um momento ideal com o qual sempre sonhara, ou sobre o qual sempre expeculara. Agora era real. Real, lento e áspero. Sabia que era definitivamente único, como sempre soube que seria. Mas por alguma razão aquele vácuo não era exatamente o que sentia antes. Era muito mais intenso. Muito mais profundo. Muito mais real.
Por mais força que fizesse, seus pulmões não conseguiam ser eficazes. Cada inspiração era desesperadora. Cada batida do coração parecia capaz de destruir todos os prédios em volta.
Enquanto isso, um muro que jamais tinha notado simplesmente se fizera presente entre seus pulmões e sua traquéia, pondo um fim em qualquer esperança de ter suas cordas vocais funcionando. Tudo que sentia, uma vez impedido de sair pela boca, mesmo que em forma de palavras desconexas e até mesmo perturbadoras, agora escorria pelos cantos dos olhos. Quente, salgado e convulsivo.
Sempre sonhara com um momento como aquele. Um “highlight” cinematográfico no meio da monotonia. E agora, quando finalmente chegara, queria nunca ter sido capaz de sequer fantasiar um momento como aquele. Mas era tarde.
Tarde e irreversível. Quando o mundo quer acontecer, simplesmente acontece. E no fundo do desespero, nos confins daquele vacuo, um sentimento ainda mais desesperador se preparava pra engolir tudo por diante. Savia que estava prestes a se conformar com as coisas como elas eram. Sabia que era irresistível. Mas sabia que até o segundo final, quando finalmente chegaria a derrota e se conformar fosse inevitável, tudo seria intenso e perene. Toda a passagem, toda a perda e toda a dor. E o mais desesperador era saber que logo passaria.
Nada pior do que saber que passa.

Dive (segue a reedição da matança)

Costumava sentar-se no parapeito da janela e ficar olhando o sol se pôr. Gostava da temperatura daquela hora. O vento era frio, enquanto os vetigios de calor no granito do parapeito da janela conseguiam manter seus pés de unhas pintadas de preto ainda quentes. Gostava daquele vento. Gostava do jeito que balançava seus cabelos, sua roupa. Tinha sempre a impressão de que logo os créditos começariam a subir por aquele ceu multicolorido e tudo estaria acabado. Seria invadida de uma paz imensa e absoluta, e nada seria capaz de abalá-la. Nem fome, nem sono, nem tristeza, nem decepção.

Os creditos nunca subiam. Por mais que ela esperasse. Costumava, depois daquilo, descer da janela, ir até a geladeira de porta vermelha, abri-la, pegar um vinho tinto seco e bebê-lo no gargalo, deixando uma ou duas gotas escorrerem por seu pescoço branco de veias azuis, até sua camiseta branca velha e grande demais. Sempre a mesma camiseta. Cheia de manchas de vinho.

Seu cabelo, depois do vento, costumava ficar desgrenhado. Era castanho claro, liso, e não muito longo. Era liso por causa da chapinha, e por isso o vento o deixava desgrenhado. Então ela caminhava com o vinho na mão até a sala. Ligava o som no maximo e parava na frente do enorme espelho que sua enorme preguiça preferia manter encostado na parede a pendurá-lo como deveria ser feito. Era sempre o mesmo CD. Ela sabia as músicas todas de cor. A seleção que ele havia feito antes de ir. Antes de dizer que não conseguia aguentar aquilo da mesma maneira que ela. Antes de partir fazendo-a, na epoca, não entender que ele estava fugindo dela e não da vida que o assustava. Agora ela sabia, mas ouvir as músicas a ajudava a ignorar isso. O vinho também tinha seu papel nesse processo.

Ligava o som e deixava a introdução calma balançar seu corpo leve e ritmadamente. Subitamente as guitarras a faziam expodir em pulos e espasmos, jogando vinho para todos os lados, nas paredes tão manchadas quanto a camiseta. Sempre a mesma música. Sempre a mesma camiseta. Sempre as mesmas paredes.

Naquele final de dia o pôr-do-sol estava diferente. Ao contrario dos outros dias, ela vestia uma camiseta da mesma cor do vinho. Estava disposta a tentar disfarçar as manchas. Ao contrario dos outros dias, a garrafa já estava pela metade quando subiu no parapeito. Jamais o sol brilhara daquela cor. Jamais o vento soprara tantas promessas em seu rosto. Jamais a certeza de que o céu seria logo tomado pelas velozes letras dos créditos esteve tão presente em seu peito. Jamais seu coração bateu naquela velocidade. Jamais viram ela se erguer e ficar de pé no parapeito. Jamais souberam como era relaxante, para ela, a sensação do granito sob a palma de seus pés, que ao contrario das outras vezes, naquele dia estava frio. Jamais viram o sorriso em seu rosto quando, ao mesmo tempo em que o sol finalmente mergulhava no horizonte, ao mesmo tempo que o último compasso da última música do cd começava a tocar, ao mesmo tempo que a última gota de vinho molhou seus labios, o espelho encostado na parede refletiu seu mergulho.

Fade Out (mais uma reedição de velharia)

Tossiu algumas vezes, sentindo os olhos encherem-se d’água, tamanha a dor que sentia na traquéia. Estava com as mãos apoiadas na borda da pia. Tudo em sua vida sempre fora invariavelmente vermelho. As roupas, os dias, as paredes, os beijos. Os pensamentos. Naquele momento, tudo era branco. Paredes, toalhas, tapetes, louças, banheira. Sua pele também era mais branca do que jamais fora. Apenas sua boca era roxa.

Tinha medo de respirar fundo e provocar outro ataque de tosse. Sentia as mãos muito secas. A boca parecia estar repleta de alguma substância viscosa que mal permitia que seus lábios se abrissem. Sorriu olhando-se no espelho. Nem precisava fingir não saber o que procurava. Via nos traços duros, na pele grudada no osso, na olheiras profundas e na pele surrada, o atentado que fizera contra sua própria beleza. Os lábios quebrados pensaram em abrir-se e dizer a ela mesma que jamais a reconheceriam se resolvesse voltar para onde tudo começara.

Num momento como aqueles, deveria haver música. Uma música calma e sem ninguém cantando. Uma música lenta, como seus movimentos, como sua respiração controlada. Mas não havia música. Mal havia luz ali. E sem dúvida nenhuma, não havia testemunha.

Caminhou até a banheira de louça. Alguns remendos de cimento branco aqui e ali não eram capazes de estragar a beleza da peça. Abriu as duas torneiras, tendo a impressão que a textura de suas mãos era mais áspera que a do ferro. Suas unhas estavam amareladas. Ninguém mais queria fotografá-las. Levou a mão esquerda até os cabelos loiros, secos e desgrenhados, e puxou-os sem muita força, apenas para se lembrar que ainda os tinha. Observou a água encher a banheira sem fazer nenhum movimento sequer. Apenas seu peito se movia. Fechou as torneiras.

Voltou à frente da pia e parou sobre o tapete branco, de tecido semelhante a uma toalha. Era bom senti-lo sob as palmas dos pés nus. Olhou seus olhos novamente no espelho. Finalmente começavam a ganhar alguma cor. As palpebras inferiores ficaram vermelhas com as lágrimas que começaram a correr em algum momento enquanto a banheira enchia. Mas ja estava acostumada a não sentir certas reações de seu organismo. Gostava do vermelho das suas pálpebras. Lembravam todo o vermelho de quando sua vida era empolgante.

Abriu a o armário ao lado do espelho. Na prateleira mais abaixo, junto com alguns tubos vazios de cosméticos que nem eram fabricados mais, estava aquilo que ela procurava. Pegou o copo com a seringa e colocou-o sobre a pia. O plastico leitoso semi-transparente do copo era uma das poucas coisas não frias naquele banheiro. Abriu o pacote com a agulha descartável e segurou-a com o polegar e o indicador da mão esquerda. Com a outra mão, pegou a seringa. Olhou-se mais uma vez no espelho, dessa vez sentindo seus lábios contorcendo-se de tanta força que fazia para segurar o pranto. Sentiu o choro explodir sonoramente pelo banheiro em um eco desesperado, seguido de um ataque de tosse doloroso demais para ser suportado de pé. Deixou-se escorregar até o chão apoiada na pia, ouvindo a seringa e a agulha fazerem um barulho suave ao cairem para perto do ralo.

Tossiu por um tempo incontável, sentindo a cada convulsão, a substância espessa dentro de sua traqueia arranhar suas paredes. O muco que chegava ate sua garganta era quente e grosso, e a impediria de falar, se tentasse, de tanto que aderira às suas cordas vocais. Cansada, com as lágrimas escorrendo ainda mais quentes, apoiou-se na pia e levantou-se novamente.

Pegou novamente a seringa do fundo da pia. A agulha certamente havia entrado pelo cano. Abriu um novo pacote e segurou a nova agulha com os mesmos dedos. Girava-a para lá e para cá, como se por alguns segundos houvesse uma pausa em seus pensamentos. Começou a caminhar em direção à banheira sem notar que seus lábios roxos estavam umedecidos de vermelho.

Entrou na banheira com dificuldade, sentindo-se tão ágil quanto uma velha caquética. Em outros tempos aquela seringa seria o instrumento que lhe traria o prazer absoluto. Em outros tempos lhe traria, mesmo antes de penetrar sua pele, uma sensaçao de leveza, de calma. Agora o que quer que fosse apenas lhe deixava cansada. Tudo a deixava cansada. Estava exausta. Demais.

Mergulhou o corpo devagar na água. Estava tão fria quanto o resto do banheiro. Pensou no futuro azulado de sua pele. Quase sorriu. Deixou-se sentir o frio da agua por algum tempo, de olhos fechados, com as mãos mergulhadas na água, segurando a seringa e a agulha. Cansada. Muito cansada.

Respirou fundo e reuniu todas as suas forças. Seus movimentos, repentinamente, readquiriram a leveza e a graça do passado, embora nenhum esforço fosse capaz de limpar a decadência estampada em seu rosto. Ajoelhou-se dentro da banheira, abriu a mão e deixou a seringa cair na água e afundar. Com um sorriso diferente daquele desmaiado que havia em seu rosto minutos atrás. Era hora de começar aquilo para o que se preparava há algumas horas.

Estendeu o braço esquerdo para frente com a palma da mão fechada virada para cima. Segurando a agulha com força com a mão direita, encostou a ponta na altura do seu pulso e pressionou ate uma gota de sangue começar a surgir do buraco imperceptivel. Então começou a puxar a agulha em direção ao corpo, riscando a pele durante todo o caminho. Uma vez perto do ombro, levou novamente a agulha ao pulso e repetiu o movimento mais quatro vezes. Trocou a agulha de mão e repetiu o processo no outro braço.

Fosse um filme e não sua vida, com certeza aquelas gotas teriam caído na água em câmera lenta. O som provavelmente também não seria ouvido. Em seu lugar, uma trilha sonora triste, vagaroza e pesada. Mas ali não haviam ângulos inusitados ou inovações tecnológicas. Apenas o sangue escorrendo de seus braços brancos e mergulhando na água, para se dissolver rapidamente.

A dor ainda era quase imperceptível. Ela precisava de mais. Bem mais. Precisava sentir e usaria aquela agulha para isso. Mas não da maneira como usava sempre. Aquela seria a estréia desse novo método. Abriu bem a mão e olhou para as costas dela. Virou e observou a palma. Virou-a novamente de costas, sorriu, e com um movimento rápido cravou agulha até que a parte de plástico que servia para encaixar na seringa encostasse sua pele. Sim! Agora sentia.

Uma alegria há muito esquecida invadiu seu peito. Uma alegria de uma sinceridade incomparável. E foi essa alegria que encheu seus olhos de lágrimas quentes que lhe enchiam de prazer enquanto escorriam pelo seu rosto e pescoço gelados. Ria alto agora. Abriu a boca e esticou a língua bem para fora. Mais uma vez, em um só movimento, removeu a agulha das costas da mão esquerda e atravessou a língua com ela. Dessa vez não a manteve cravada. Retirou rápido, deixando sua língua voltar à boca, e inundar sua garganta de sangue quente e azedo.

Seu pranto agora a enchia de calma. Depois de tanto, tanto tempo, estava em paz. Sua única certeza é que essa paz só poderia durar pra sempre de um jeito. Era uma certeza simples, que não a amedrontava de maneira nenhuma, e que no final das contas, parecia muito menos dramática do que se manter daquele jeito deplorável.

Deixou o corpo escorregar para dentro da banheira. Com a mão esquerda dormente de dor, segurou a seringa. Rapidamente atarrachou a agulha nela. Respirou fundo ainda sorrindo. Ainda com a respiração leve que apenas aquelas pessoas que vivenciam os raros momentos em que tudo que devia e poderia já foi feito, e que nada mais está por vir sabem como é. Encostou a cabeça na borda da banheira, fechou os olhos. Deveria fazer tudo em um golpe só.

O ar que a seringa injetou na artéria de seu pescoço chegou rapidamente ao cérebro, acabando de uma vez por todas com uma agonia que ela nem entendia, nem sabia quando começou. As fotos de seu corpo imerso na banheira lavada de sangue ainda serviram para encher alguns bolsos de dinheiro. Seu funeral foi acompanhado apenas pelos pais e uns poucos amigos. As cinzas estão divididas em um grande número de pequenos frascos, que podem ser adquiridos por um preço nem tão absurdo pela internet.